sábado, 18 de julho de 2009

O Cão Negro do Passeio Público

Saiu na revista, agora posso publicar no blog.

O cão negro do Passeio Público - O caso ocorrido com o analista de informática Fernando Zanardini até hoje o oprime de tal forma que ele impôs uma condição para abordá-lo: nada de entrevista. Ele se comprometeu a contar a história, e o fez por escrito. Vamos a ela:

“Aconteceu em 1984, no dia 29 de fevereiro. Noite de calor insuportável. As aulas na faculdade ainda não haviam reiniciado e as noites eram dedicadas ao que melhor sabíamos fazer, beber. Antes de sair, nos reuníamos em meu apartamento, num velho prédio atrás da Universidade Federal do Paraná, entre as ruas Presidente Faria e Alfredo Bufrem. Juarez, palmeirense fanático e aniversariante da noite, foi a primeiro a chegar. Entrou e ligou o rádio para escutar o jogo entre o Operário-MS e seu glorioso time. Em seguida chegou Ivan, com cara de poucos amigos. Havia sido demitido, segundo ele, por um motivo banal. Contou, depois, que tinha dado uns safanões numa velhota que o havia chamado de ‘Herman, o Monstro’. Ele era realmente parecido - só faltavam os parafusos no pescoço.
Tirei os dois de casa pelas 22 horas. Juarez, o aniversariante, escolheu um bar na Rua Riachuelo, próximo ao colégio Tiradentes. Queria ver as meninas saindo. Chegou a primeira cerveja e, com ela, um desses personagens típicos das cidades. Daqueles que vagueiam pelas ruas centrais vestindo trapos e com a barba grande e negligenciada. Ao contrário dos outros pedintes, essas pessoas geralmente não incomodam ninguém, e estão apenas buscando sobreviver do lixo ou da caridade alheia.
Com ar melancólico, pediu dinheiro. Oferecemos um copo de cerveja, que ele aceitou. Sem pedir licença, foi sentando. E contou sua história, marcada pela tragédia e pela loucura. Disse que tinha 46 anos (aparentava bem mais), e que havia sido funcionário graduado de uma grande empresa. As muitas horas de trabalho o fizeram perder a cabeça. Entrou em depressão, deixou a família e virou vagabundo. Desde então, vagueia por Curitiba com lembranças e um carrinho de compras. Pediu mais cerveja e tirou do bolso uma fotografia, desatando a chorar.
Eu estava cansado e já havia ouvido muitas histórias semelhantes. Levantei e disse que iria dar uma volta antes de retornar ao apartamento. Os dois que ouvissem as histórias do pobre coitado. ‘- Cuidado por onde anda’, ele disparou.
Quase meia-noite. Subi a Riachuelo e desci a Carlos Cavalcanti rumo ao Passeio Público. Estava na frente do portão de entrada. Ouvi alguém me chamar. Olhei para trás, não havia ninguém. A voz, feminina, vinha do parque. Procurei alguma coisa na escuridão, mas nada. Só a voz. Minha respiração acelerou. Outro chamado. Acelerei o passo, a voz foi atrás. ‘Devem ser aqueles putos que saíram do bar e encontraram alguém para me pregar uma peça’, pensei.
Decidii entrar no jogo. Pulei o muro e tentei seguir a voz. Cheguei à área dos pássaros. Silêncio. Outro som, de um cão rosnando. Fechei os olhos, enguli a saliva. Outra vez o rosnado, mais alto e aterrador. ‘- What the hell!?’ O ruído nascia de um pequeno cão negro. Um poodle toy assassino, a não mais de cinco passos, mostrando enormes caninos brancos e olhos injetados de sangue. Uma baba espessa e escura caía-lhe da boca. Uma névoa amarelada pairava ao seu redor. Voou em minha direção. Só tive tempo de pular o gradil que cerca os viveiros e arrombar um deles, onde me tranquei. Por um instante, silêncio. Só até sentir aqueles dentes tentando romper a tela de arame com um barulho horrível.
‘- Pare! Saia daqui!’, gritei, enquanto tirava o cinto e batia com a fivela, tentando fazer a fera parar. Em instantes, tudo ficou quieto. A tela tinha um buraco, e algo se movia ao meu redor. Ao meu lado, o anão canino estava pronto para atacar. Sem chance de fuga. Fui mordido e puxado para baixo. Dor e sangue. Sem largar minha perna, o maldito cão arrastou-me para fora, rumo ao lago. Sua força era assombrosa. Eu tentava me agarrar a qualquer coisa, e minhas mãos começaram a sangrar. Desmaiei.
Pela manhã, fui acordado por um funcionário que, histérico, me acusava de ter soltado os pássaros. Levou-me a até a administração. Contei minha história ao sujeito, que não acreditou. Fui preso. No final da tarde, Juarez, Ivan e um advogado foram me soltar. Respondi a um processo por invasão e depredação de patrimônio público. Na audiência, a bem da verdade, sequer tentei me defender – afinal, quem iria acreditar naquela história? A pequena cicatriz no tornozelo e a tremenda mácula no coração (além, é claro, de um ódio insano por poodles toy), porém, dão-me a certeza de minha própria sanidade – e da condição insólita da realidade."

Nenhum comentário: